Contemplação no Cinema — Minutos de silêncio entre a construção de histórias.

Como as pausas muitas vezes, implícitas, são essenciais para que a percepção de um filme seja parte de uma experiência completa.

rebecca
8 min readAug 15, 2021

O termo japonês “Ma” pode ser entendido e traduzido como um “espaço negativo”. A palavra contemplação significa “admirar alguma coisa”; no cinema, Ma é interpretado naquele minuto de silêncio ou cena em que o personagem principal está imerso no espaço e tempo atual; na música, é o segundo que antecede e sucede um verso, refrão ou ponte. Søren Kierkegaard propõe que cada indivíduo é responsável por dar sentido à vida e vivê-la com autenticidade. O Existencialismo estuda o ser humano em seu todo, excluindo a divisão de aspectos internos e externos. Partindo desses princípios, como a origem de ‘Ma’ que reúne dois conceitos: Porta/Portão e Sol; o intervalo entre ação e reação é sinônimo de uma admiração gratuita.

No filme Call Me By Your Name do diretor Luca Guadagnino, duas cenas reforçam a sensação de preenchimento sem expôr qualquer outro elemento na tela além do personagem principal.

Cena 1: A ligação de Oliver.

Enquanto a câmera gradativamente se aproxima de Elio na técnica de filmagem chamada “Push In”, que consiste em mover a câmera na direção do objeto na cena; algumas pausas são ouvidas entre as falas dele e de Oliver, percebemos muito mais sobre as características de cada um nesses minutos que precedem a última cena. A tentativa de capturar sentimentos através da ausência de movimentos ao redor é um dos pontos-chave do filme, que explora o ambiente externo e as diversas paisagens italianas como um terceiro indivíduo na história. Isso faz com que muitos momentos de silêncio se tornem indispensáveis para construir a narrativa de Elio e Oliver.

Cena 2: Lareira.

O personagem de Timothée Chalamet sentado em frente à lareira no curto tempo em que as chamas iluminam seu rosto e sua expressão muda conforme as percepções dele sobre todo o verão também estão em transformação. A experiência derivada dessa cena é uma provocação de “Ma”, o complemento para encerrar o filme da maneira que Luca determinou estava, justamente, na quietude e observação; o efeito “Bokeh” presente mostra a representação visual onde o fundo e os chamados de Annella Perlman estão desfocados e embaçados, somente Elio está como “objeto principal” em foco. Nos olhos de Elio as lágrimas simbolizam a tristeza pela notícia do noivado de Oliver ao mesmo tempo em que em uma fração de segundos um sorriso é esboçado e é perceptível que tanto Elio quanto a narrativa construída estavam em estado puro de contemplação.

O filme Mommy de Xavier Dolan é um exemplo que se encaixa tanto na definição de Existencialismo de Sartre onde “a existência precede a essência” e cada escolha feita determina ao mesmo tempo em que revela o que se pensa sobre o que um ser humano deveria ser.

Steve e Diane tem pensamentos distintos e portanto agem de maneiras diferentes ainda que cada uma de suas ações gerem reações que comprometem o futuro de Steve. Para Steve, ser um adolescente diagnosticado com Síndrome de Déficit de Atenção Hiperativa e tendências violentas e viver com sua mãe viúva na cidade de Saint-Hubert, na França, tem seus altos e baixos, aos poucos, as lacunas da história de Steve são preenchidas quando ele e Diane conhecem Kyla, vizinha que se torna “parte da família”. O filósofo Søren Kierkegaard discute que as emoções são direcionadas intencionalmente a um objeto; vertigem da liberdade por Kierkegaard é o sentimento de ser ou não ser. Para Sartre existem duas maneiras de se encontrar com o vazio; Ser-em-si é a existência mínima das coisas; Ser-para-si é a consciência de uma experiência contínua. Na cena onde Steve anda de skate seguido por Diane e Kyla de bicicleta e as mãos de Steve simbolizam um movimento de “open camera” enquanto o formato do filme passa de square para fullscreen, os minutos seguintes são um conjunto das contemplações de Steve; o ato de render-se ao vento de braços abertos e ter a câmera filmando de back to front shot mostra a representação de um cenário em que as expressões dos personagens e a construção da perspectiva ficassem explícitas. Quando a cena final consiste em Steve correndo nos corredores da clínica, os versos de Born to Die refletem toda a relação entre Steve e Diane: “não me deixe triste, não me faça chorar, às vezes o amor não é o suficiente e a estrada fica difícil”, paralelo com a fala de Steve: “um dia você não vai me amar mais, é verdade, isso acontece” e outra frase que define a narrativa de Mommy: “amar as pessoas não as salva”. A técnica de filmagem se expressa através da trilha sonora em conjunto com os poucos elementos dispostos na cena, o personagem principal em busca de sua liberdade; Sartre também estabelece que o enfrentamento diante do vazio encontrado pelo homem é a aceitação de uma vivência autêntica e pura.

A ação é parte essencial para que um final aconteça nos filmes, mas isso não justifica os meios e muito menos conseguem extrair os significados ocultos no início. O vazio de “Ma” que constitui, de maneira livre, em “deixar a porta aberta para que o sol entre” é a reação do “durante” que antecede o ato mais importante do filme. O ponto de equilíbrio entre vazio e contemplação é encontrado nos últimos minutos do filme Sound of Metal, onde o personagem principal, Ruben, retira os aparelhos auditivos e o silêncio é a ênfase restante na história retratada por Riz Ahmed; o “nada” em Sound of Metal é uma constatação de vazio espiritual. Na filosofia budista enxergar a percepção do vazio existencial é fundamental para alcançar a liberdade; o ato de submeter-se a encarar o silêncio como único método de viver em paz, Ruben privou-se do sofrimento de sua vida atual em prol da sensação de pertencimento.

O filme Drive (2011) tem uma atmosfera construída no caos mas a sua narrativa é centrada na solidão do personagem Driver de Ryan Gosling e sua relação ausenta de diálogos com a vizinha Irene e seu filho Benício. Entende-se nas palavras de Sartre que um ser humano não é definido por uma essência imediata mas pelo modo como vive; Driver sabe que suas escolhas o levaram a colocar Irene e Benício em perigo, portanto, ele é condenado a uma liberdade finita dentro de seus ideais e estilo de vida. A cena inicial retrata a construção do personagem a partir do momento em que a câmera captura suas reações às ações que estão acontecendo ao seu redor; as poucas expressões de Ryan Gosling mostram a seriedade de Driver dentro de seu espaço e tempo, o vazio de Drive não está presente somente na ausência de técnicas de filmagem nas cenas em que Driver é o foco principal mas também nos inúmeros momentos em que o personagem é filmado do ângulo “back shot” ou “close-up”. “Ma” no filme de Nicolas Winding Refn é a pausa em que a contemplação acontece de fora para dentro. O “Em-si” de Sartre, se refere ao indivíduo ou objeto que existe no mundo mas não é nada além disso; o ser “Em-si” não tem consciência de si mesmo ou do universo. O “Para-si” é o conhecimento interior que constrói um sentido para o lugar onde vive; um ser sem essência pré-definida cuja existência é parte do processo de compreensão e percepção de si próprio como indivíduo no mundo. O autoconhecimento em Drive está na interpretação do personagem perante o seu papel como motorista de fuga e homem na visão de Irene e Benício; a relação entre Driver, Irene e Benício é construída em poucos diálogos e momentos de silêncio que são suficientes para a contemplação individual de cada um.

O filme “Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças” é fundamental para o entendimento do vazio e contemplação. O looping eterno onde Joel e Clementine vivem exprime a verdadeira face de um amor realista. Enquanto as memórias são apagadas e eles se conhecem novamente, como se estivessem predestinados a reviverem todas as memórias até reconhecerem que são parte de algo maior. Joel é ilustrado como um cara solitário que questiona o seu lugar como indivíduo no relacionamento com Clementine e nos ambientes ao seu redor; a cena final onde os protagonistas se reencontram e correm pela praia se repete infinitamente dentro do tempo e espaço, a música “Everybody’s Gotta Learn Sometime” toca: Mude seu coração, olhe ao redor / Mude seu coração, isso vai te surpreender / Eu preciso do seu amor como o sol. Uma representação que exemplifica a história em poucos segundos: Joel e Clementine sempre vão se esquecer um do outro dentro do loop ininterrupto em que Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças acontece, e como o “sol” estão destinados a aparecerem, cedo ou tarde, novamente na vida de ambos para que o amor renasça a cada reencontro; parafraseando Taylor Swift: “Tempo, curioso tempo, não me deu bússolas, não me deu sinais / Havia pistas que eu não vi? / E não é tão bonito de pensar / O tempo todo existia uma linha invisível amarrando você a mim?”.

O “Taoismo” do termo chinês Tao que significa “caminho” ou “princípio”, entende o vazio como um estado de quietude; um espelho do universo. O equilíbrio entre o vazio existencial e espiritual de Joel e Clementine é explícito nos minutos finais do filme, a cena contém uma benevolência imensurável que expressa a melancolia dos personagens e enredo; o nada existente durante os momentos em que as memórias estão desaparecendo e os muitos diálogos de Joel e Clementine — como no trem e na praia — resumem o roteiro de maneira objetiva.

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rebecca

escrevendo sobre os meus álbuns e filmes favoritos e outras coisas bem aleatórias.